O que menos gordura nos laticínios me diz sobre política
Menor poder de compra e segurança alimentar em jogo
Comecei a produzir um canal no YouTube com foco em receitas. Com isso, passei a aprender com a Madame Caramella os segredos da pâtisserie para a produção de doces finos, de alta qualidade e para o mercado premium.
Madame Caramella repete que doce bom se faz com matérias primas de qualidade, gordura e açúcar. Daí, lembro de uma visita técnica pela linha de produção da Chocolates Garoto com o Dr. Helmut Meyerfreund, antigo acionista. Ao me apresentar as linhas de produção, ele disse que a qualidade do chocolate vem pela quantidade de manteiga de cacau (gordura) misturada que, quanto mais, melhor fica; e bater muito. Convidado pela Nestlé, estava eu lá 10 anos depois para escrever o livro dos 80 anos da Garoto, quando, para celebrar, fizeram uma ‘fornada’ de chocolate ao leite seguindo este princípio, sem defeito para os melhores suíços.
Mas, o que tudo isso tem a ver com o título? O mercado brasileiro tornou-se especialista em simplificar produtos. Seja reduzindo o tamanho das embalagens ou modificando a fórmula para garantir preços e mercados.
Claro que esta percepção sobre os laticínios foi despertada pelas observações da Madame. E esse setor está nesta fase de mexer nas fórmulas para segurar preços. Tais modificações estão além dos produtos diet (mesmo açúcar) e light (redução de um ingrediente qualquer, pode ser sal, gordura, etc), segmento específico que, geralmente, são até mais caros. Chamou a minha atenção a grande oferta pelo setor de novos produtos que, de fato, são de qualidade muito inferior.
Se você atua no segmento premium da pâtisserie, depara-se com um problema sério:
- Manter a produção usando insumos de qualidade significa preços altos.
- Adicionar outra fonte de gordura que — para manter minimamente a qualidade, seria a manteiga — além da necessidade de testar a nova receita, significa pressionar o custo de produção por necessitar de mais insumos.
- Se usar os produtos intermediários ou os “similares”, significa afetar diretamente a qualidade final do seu produto.
Isso ocorre por causa da escalada da inflação e a perda de poder de compra do nosso dinheiro frente ao dólar. E para não perder mercado, onde não há margem para mexer na quantidade, altera-se a qualidade. Daí, ao fazer o seu pudim, você questiona onde foi que errou, porque ele não está com aparência, nem consistência e sabor como antes; o por quê seu brigadeiro ficou com uma textura diferente. O problema está no produto do supermercado pois, o fornecedor, para manter suas vendas, rentabilidade, lucratividade e mercado, precisa ele mesmo criar um substituto, porque o seu produto original agora é caro tanto para ele fabricar quanto para o consumidor adquirir.
Tais mudanças ocorrem nas marcas líderes de mercado bem como nas regionais. Veja alguns substitutos criados pelo mercado:
- Leite em pó > mistura láctea.
- Leite condensado > mistura láctea condensada.
- Creme de leite > o creme culinário, feito com gordura vegetal.
- Manteiga tem a velha margarina, que é um produto químico > agora tem a mistura da manteiga com a margarina.
Para ficar mais claro, um exemplo: mistura láctea é um produto com no mínimo 51% de qualquer elemento lácteo. Neste caso, vai o soro. O soro do leite é aquela água bem rala da sobra de quando se faz queijo ou iogurte. O leite condensado integral é feito com 100% de leite e de açúcares. A mistura láctea condensada é composta pelo soro do leite, amido de milho e açúcares. Logo, atenção no rótulo!
A redução de gordura dos laticínios em geral significa que estamos levando um produto menos concentrado, abaixo da sua condição primeira, do seu estado original. Logo, não se assuste se tudo der errado na cozinha, pois você escolheu por preço e não viu que era outro produto. Mas uma pessoa que só quer um docinho, não tem a necessidade de saber destes detalhes técnicos de uma receita.
Residi sete anos fora do Brasil, no Oriente Médio, e lá tornou-se perceptível o tal “mercado emergente’ que tanto ouvi falar nas pós em Marketing, Gestão e Comunicação: são produtos simples, de qualidade aceitável e de baixo custo de produção. Estamos falando de tecnologias que já se pagaram ou dos substitutos. Fora do Brasil conheci um mercado com abundância de produtos específicos para atender segmentação, público-alvo e nichos. Morei em um país com quatro milhões de habitantes — o tamanho do Espírito Santo -, com ofertas de produtos e serviços maiores e melhores do que todo Brasil, incluindo São Paulo, só pra reforçar. Pasmem!
O Brasil é um país vocacionado a produtos intermediários pela ausência de artigos para seus segmentos e nichos específicos. Pagamos caro por mercadorias de entrada e absurdamente pelos produtos premium. O intermediário, como o nome diz, faz a ponte entre o produto de entrada e o caro. Mas tem aquele outro produto simples que recebe um tapa para que tenha uma versão “pé de boi” e outra “sofisticada”, permitindo ao fabricante ganhar em várias faixas de preço com um único ítem. Exemplo prático são as diversas versões de um mesmo carro. Mas, com a perda sistemática do valor da nossa moeda, corremos o risco de perder este segmento também.
Voltando aos laticínios, vamos refletir mais sobre o acesso ao alimento de forma geral. A Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO) classifica que
“segurança alimentar ocorre quando todas as pessoas têm acesso físico, social e econômico permanente a alimentos seguros, nutritivos e em quantidade suficiente para satisfazer suas necessidades nutricionais e preferências alimentares, tendo assim uma vida ativa e saudável.”
Quando você vai ao supermercado e substitui alimentos porque sua renda não comportar mais pagar pelo que você sempre comprou, você entrou no nível da “insegurança alimentar leve”. Espero que isso nunca se agrave e fique neste nível do “desapercebido”. No entanto, isso significa que você não possui mais poder de compra para compor sua cesta básica. O problema agrava-se nos extratos mais pobres da população. Muitos estão no nível onde não podem mais ter as três refeições diárias e até mesmo não tê-la. Logo, estes novos produtos estão mostrando que algo grave acontece em nosso país.
Eu era criança na década de 1980 e fiquei várias vezes na fila do pão , porque não havia pão suficiente. Na do leite, porque não havia leite suficiente para vender. Com meu pai na do combustível, porque não havia combustível suficiente para abastecimento dos carros. Pela manhã, já havia o anúncio do preço da tarde. Agora sou eu na fila do combustível na tentativa de abastecer com o preço menos caro. A minha cesta básica já reduziu de tamanho, de marcas, de ítens e ainda continua cara.
São lembranças de um Brasil que gostaria que ficassem no passado e não ter este déjà vu na minha fase adulta.
Por isso, ao meu ver, novos produtos do setor de laticínio não tem nada a ver com a qualidade das receitas, e sim com política.